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domingo, 1 de maio de 2011

Algumas revoluções escolares possíveis

Algumas revoluções escolares possíveis: "

Por Carol Bensimon

Estudei doze anos na mesma escola. Com o nome de um papa, mas laica. Nunca entendi se isso era um disfarce ou o quê, embora o nome remetesse ao “papa bom”, aquele que acusaram de maçom, aquele que acusaram de esquerdista, aquele que fez minha bisavó (judia) desligar o fogo, sentar e chorar quando sua morte foi anunciada pelo rádio. Por doze anos meu pai me levou e me buscou nessa escola que não era nada perto de onde a gente morava, mas que tinha uma proposta pedagógica convincente e diferenciada. O caminho era: Goethe, Silva Só, Princesa Isabel, Azenha, Carlos Barbosa, Sepé Tiaraju. No início, contávamos os carros amarelos que víamos no trajeto. No fim, ouvíamos meus CDs de soft rock dos anos 90.

As pessoas costumam perguntar a escritores há quanto tempo eles escrevem. Se eles escrevem “desde sempre”. Nunca perguntam aos engenheiros se eles desenhavam carros ou pontes quando crianças ou se os administradores tinham planilhas de gastos com bala e paçoca. Eu não escrevi “desde sempre” ― salvo um ou outro caso pontual, como o poema sobre a cor roxa ―, mas fui uma leitora desde quando foi possível. Meu colégio tem pelo menos a metade da responsabilidade por isso. A outra metade deve-se aos pais bacanas que tive.

Muito antes da inserção da disciplina chamada Literatura na grade escolar, as professoras de português já tinham nos feito ler um bocado de livros. A coisa degringola um pouco quando você é obrigado a vencer José de Alencar para ir bem no vestibular, mas nessa altura, por sorte, já haviam nos dito que literatura podia ser algo bem diferente daquilo. Na quinta, sexta e sétima série, havia um sistema engraçado, as chamadas entrevistas, que funcionavam mais ou menos assim: a cada trimestre, recebíamos uma lista com uma dúzia de obras, dentre as quais devíamos escolher três. Depois disso, em dias determinados, a professora chamava os alunos individualmente e pedia que eles lhe contassem sobre o livro escolhido. Era na verdade um bate-papo com pouca cara de avaliação, o que colocava a literatura em seu devido lugar (menos institucionalizada possível). Lembro de estar sentada com as costas apoiadas no marco da porta, esperando minha vez enquanto olhava para fora, para todo aquele espaço aberto que havia no colégio ― e que fazia com que ele fosse tão diferente dos outros colégios que, aos meus olhos, pareciam uns conventos ou uns hospitais ―, uma espécie de colégio para os filhos de quem tinha sido hippie ou votava no PT ou tinha uma grande biblioteca em casa, embora dissessem naqueles dias que ele já não era mais o que tinha sido antigamente. Bons tempos.

Dessa época, o livro que eu jamais esqueci foi O último mamífero do Martinelli (Marcos Rey), talvez porque tenha sido o primeiro que tendia mais para o adulto que para o infantojuvenil, onde havia o mistério que você espera encontrar nos livros quando tem treze anos, mas também uma certa sutileza, aquele vazio dos conjuntos abandonados, aquelas vidas retraçadas pelo protagonista, tudo isso era muito bonito e foi uma verdadeira revolução.

Depois vieram outras revoluções. Às vezes isso não é mérito de uma proposta pedagógica, mas da motivação, da competência e sobretudo da coragem de um ou outro professor, o que pode acabar fazendo toda a diferença na sua vida. Na oitava série, lemos O apanhador no campo de centeio e A revolução dos bichos. Acho que foi também nesse ano que tivemos contato com os contos do Poe.

Recebi um email dessa professora outro dia, dizendo que acompanha minha carreira e etc. Eu na verdade estava há anos à procura dela nas redes sociais da vida. Com frequência, também reconheço rostos de ex-alunos por aí. Um número considerável deles está envolvido com cultura. Ou pode ser que eu esteja vendo as coisas pela lente da idealização e esquecendo de colocar na conta aqueles que não foram influenciados por nada disso e também aqueles que estudavam lá simplesmente porque era o colégio mais perto de suas casas. Mas eu sinceramente prefiro acreditar que aquelas paineiras e aqueles livros e aquele caminho comprido por avenidas feias e intermináveis formou boa parte do nosso caráter.

* * * * *

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008, e no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Ela contribui para o blog com uma coluna quinzenal.

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