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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O QUE ESTAMOS FAZENDO COM NOSSAS CRIANÇAS?

O QUE ESTAMOS FAZENDO COM NOSSAS CRIANÇAS?:



VANDA SIQUEIRA



Prof. Dr. Marcelo Domingues Roman - Prof. de Psicologia da UNIFESP /Campos Baixada Santista -

Colaborador do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo -Texto publicado no Jornal do Litoral

(Baixada Santista)



Torna-se cada vez mais comum crianças e adolescentes serem encaminhados a

serviços de saúde porque apresentam problemas na escola. Esse fenômeno não é novo e

tem sido chamado de medicalização da educação: trata-se de reduzir questões

escolares, e consequentemente sociais, a problemas médicos. Isso vem se intensificando a partir do uso de psicoestimulantes para controle de hiperatividade e incremento da capacidade de atenção.



Também tem se tornado comum crianças e adolescentes serem encaminhados a serviços de justiça por razões semelhantes, sobretudo quando assumem formas agudas ou tendem a se cronificar, evidenciando, assim, outro fenômeno também conhecido entre nós, a chamada judicialização, ou seja, a redução das mesmas questões a problemas de justiça.



Se no primeiro caso assistimos à administração de nocivas drogas psiquiátricas a sistemas nervosos ainda em formação, no segundo nos assombramos com o selamento de destinos à margem da sociedade e, pior, operado por profissionais encarregados de proteger e tratar a infância.



A apresentação sucinta de um caso pode deixar mais claro o que estou afirmando.

Wilson era um aluno de 5º ano quando o conheci. Ele costumava ter “surtos” – assim

eram chamados, pelos agentes escolares, seus ímpetos de indisciplina e aparente

descontrole. Em um desses ímpetos, a escola chamou a polícia, que a muito custo o

controlou e decidiu por enviá-lo ao hospital em uma ambulância. O acontecimento é

assustador, ainda mais se tratando de um menino de 10 anos. Mas, dirão os da escola,

seu comportamento atingiu um nível inaceitável: agredia colegas e educadoras, gritava, xingava, saía correndo pelos corredores do prédio.



Tanto é que havia sido diagnosticado por um especialista como portador de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), tendo sido lhe receitado Ritalina®. E, como estamos em um município em que esse medicamento é distribuído gratuitamente à população, não haveria razões para sua destemperança, a não ser por negligência do aluno ou de sua família.



É preciso que analisemos com calma. O caso é complexo e não aceita respostas

simples, o que, de cara, já nos faz desconfiar de uma saída baseada apenas no controle medicamentoso. A quem se dedica a estudar seriamente o fenômeno humano, torna-se claro que estabelecer causas lineares entre causa e efeito é, no mínimo, ingenuidade.



Há que se pensar, sempre, em multideterminação, o que afasta a resposta tão frequente

quanto simplista de que o comportamento de Wilson é efeito de mau funcionamento

cerebral. A medicina não dispõe ainda de exames que afiram desequilíbrios

neuroquímicos, ainda que estes desequilíbrios sejam propagandeados como causas

inequívocas de supostos transtornos. Além disso, autocontrole voluntário do

comportamento e da atenção são habilidades ensinadas e aprendidas, e não simples

efeitos do funcionamento cerebral. Portanto, é mais acertado pensarmos que o

funcionamento cerebral é efeito de processos de aprendizado social, não o contrário.

Assim, as raízes da forma como Wilson se comporta devem ser buscadas nas suas

relações com o contexto que o envolve, ao longo de toda sua existência. Isso significa levar em consideração sua vida dentro e fora da escola; sua história familiar e seu percurso na instituição.



Escola e família, porém, também devem ser contextualizadas social e historicamente. É preciso saber a que classe social pertence a família, a que condições de vida está sujeita, qual a qualidade das políticas públicas de bem estar social a que tem acesso, quais as transformações tecnológicas, econômicas e sociais mais amplas que acabam influenciando o comportamento não só de Wilson e sua família mas de todos nós. Do mesmo modo a escola: qual a sua qualidade? Os professores são bem pagos, têm boa formação, boas condições de trabalho e participam democraticamente das decisões institucionais? Os conteúdos e métodos de ensino são adequados?



Toda essa problemática é dissimulada quando apenas ministramos, ou tentamos ministrar, comprimidos de Ritalina® para Wilson. Mas há quem ganhe com isso, evidentemente. Em primeiro lugar a indústria farmacêutica com seus lucros astronômicos, capazes de financiar pesquisadores que divulgam o transtorno e o tratamento como verdades científicas avançadas e inquestionáveis.



O sistema de saúde mental infantil do município também ganha, pois oferece com menor gasto uma resposta à demanda, uma vez que não se dispõe a lidar com a complexidade envolvida na questão. A escola e a professora de Wilson, caso ele tome o remédio, também ganham: se asseguram que o problema está apenas no aluno ou em sua família e não precisam, assim, questionar seu próprio trabalho. Então, quer dizer que o remédio funciona? De fato, os psicoestimulantes têm a capacidade inicial de

aumentar a performance das funções cognitivas, entre as quais a capacidade de focar a atenção.



É por esse motivo que a cocaína, ou mesmo a Ritalina®, são utilizados por profissionais ou estudantes em momentos estratégicos ou de pressão.

Uma criança medicada na sala de aula é, inicialmente, uma criança focada e quieta.

Sim, porque, paradoxalmente, o estimulante faz com que as crianças se aquietem, a

ponto de se tornarem como zumbis. Na verdade, zombie-like é um sinal de toxicidade da medicação, cuja lista de reações adversas é alarmante: nervosismo, insônia, cefaleia, discinesia, tontura, dor abdominal, humor depressivo transitório, retardamento do crescimento etc. – a lista é grande; basta consultar a bula do medicamento.



Seu consumo prolongado é sugerido, por certas pesquisas, como determinante de peso para a drogadição na adolescência e a ocorrência de pensamentos suicidas. Há longo prazo, parece que o medicamento induz a efeitos inversos do que se propunha a realizar: agitação motora e dificuldade de aprendizagem. Esse é o preço que estamos dispostos a pagar para calar nossas crianças?



Fiquei inicialmente animado quando soube que o caso de Wilson seria discutido por

profissionais de saúde, assistência social e educação, numa espécie de reunião interserviços.



Nessa reunião, foi comentada sua complexa situação familiar: mãe viciada em

cocaína, capaz de se prostituir para conseguir a droga; pai enfraquecido; relação

erotizada entre mãe e filho, ambos refratários a prescrições medicamentosas. Isso sem contar outros agravantes comuns a vidas castigadas pela pobreza. A discussão foi bem rica, pois contou com diversas perspectivas profissionais provenientes de diferentes serviços públicos. Porém, algo unificou a diversidade: a sensação de impotência diante da complexidade do caso. Optaram então por acionar o Ministério Público, a fim de que este pressionasse Wilson e sua mãe a aderirem à medicação.



Assim, um caso que manifestava, a seu modo, a difícil condição social a que são sujeitas inúmeras famílias em

nossa sociedade, um caso que tinha como uma de suas vias de expressão condutas

antissociais na escola, expressão esta transformada em patologia a ser medicada, agora encaminhava-se a se tornar um caso de justiça.



Não é aceitável que continuemos a culpar e reprimir aqueles que mais sofrem as

condições aviltantes de nosso funcionamento social. Não é possível que continuemos

formando profissionais que se utilizam de meios pretensamente eficazes, neutros,

“científicos”, para perpetuar formas de submissão dos deserdados e de

desresponsabilização das instituições sociais. São necessários investimentos maciços em melhores condições de vida, em relações sociais humanizadas e em condições dignas de trabalho nas instituições de educação, saúde e assistência social, não na indústria farmacêutica nem em aparatos de controle jurídico e policial de problemas sociais.



Fábio Alexandre Gomes

Assistente Social - Cress 33.761/9ª região



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